O SISTEMA DA VIDA ÉTICA DE HEGEL COMO REPRESENTAÇÃO SISTEMÁTICA E ORGÂNICA DAS RELAÇÕES ENTRE INDIVÍDUO, SOCIEDADE E ESTADO
O texto abaixo é fruto da comunicação proferida na Semana da Filosofia da Universidade Presbiteriana Mackenzie no ano de 2016. O tema do evento foi Idealismo alemão: Antecedentes e desdobramentos.
A semana da filosofia é um evento que busca divulgar as produções da instituição e de pesquisadores convidados, abrindo para o público a oportunidade de se deparar com as pesquisas desenvolvidas na instituição.
Para maiores informações ver http://delphos-gp.com/XVIII_semana_filosofia/semanas.html .
COMUNICAÇÃO:
O SISTEMA DA VIDA ÉTICA DE HEGEL COMO REPRESENTAÇÃO SISTEMÁTICA E ORGÂNICA DAS RELAÇÕES ENTRE INDIVÍDUO, SOCIEDADE E ESTADO
Boa noite.
Gostaria de iniciar minha fala agradecendo a Universidade Presbiteriana Mackenzie pela oportunidade proporcionada para a fomentação dos estudos de filosofia. Gostaria de agradecer especialmente cada docente e cada amigo do Departamento de Filosofia da Universidade, cada um foi uma ocasião de aprendizagem com amizade e alegria. Por fim, gostaria de agradecer especialmente ao Prof. Dr. Roger Fernandes Campato pela amizade, pela paciência e pela dedicação em me auxiliar no trabalho sobre o texto “O Sistema da Vida Ética” de Hegel, desde os tempos de graduação.
Tarefa árdua foi criar uma apresentação coerente sobre “O Sistema da Vida Ética” de Hegel com um tempo de explanação curto. Todo esforço empregado não foi suficiente para apresentar esta obra com a dignidade que lhe é inerente. É, portanto, inevitável o contato e o estudo rigoroso desta importante obra que é um dos fundamentos da filosofia propriamente hegeliana.
Introdução:
A filosofia de Hegel (1770-1831) é sem dúvida um marco referencial para todo pensamento filosófico posterior. Frederick C. Beiser (2014), professor da Universidade de Indiana, em um artigo de introdução à filosofia de Hegel, destaca o grande significado histórico alcançado pela obra hegeliana tendo em vista as diversas formas em que se desenvolveram a filosofia moderna por ele influenciada ou que reagiram contra ele.
Não foram poucos os que acusaram Hegel de ser um filósofo obscuro, ou ainda, um charlatão (BEISER, 2014). No entanto, o empreendimento erguido durante os anos de formação do jovem Hegel revela um alto grau de erudição alcançado por um aluno dedicado e apaixonado pela filosofia Clássica, além de um jovem engajado nos acontecimentos históricos de seu tempo, provocando, como consequência, uma terminologia sofisticada, complexa e um aparato conceitual extremamente apurado, exprimido no alto grau de abstração de suas obras.
A profunda imersão de Hegel nas tradições filosóficas, da tradição moderna até a tradição Clássica, e o engajamento efetivo nos acontecimentos históricos de seu tempo, produziram no pensamento hegeliano uma tentativa de explicar todo o desenvolvimento histórico ocidental de modo orgânico, com conceitos e ideias capazes de alcançar esta multiplicidade de fenômenos em um sistema unificador.
O sistema da vida ética (System der sittlichkeit), texto de 1802/03, é uma das obras de Hegel que inauguram uma filosofia propriamente sua. Este escrito, que apareceu de forma póstuma, é uma das primeiras tentativas de consolidar o pensamento sistêmico de Hegel.
Em suma, esta exposição tentará expor as condições que permitiram a produção de O sistema da vida ética tentando esclarecer a relação entre indivíduo, sociedade e Estado como um processo de desenvolvimento histórico orgânico que possui seu movimento através do método da subsunção. Cabe-nos analisar com certo rigor esta obra de Hegel e explicitar a gênese e a originalidade trazida para o interior da tradição filosófica.
Uma breve introdução ao desenvolvimento intelectual de Hegel até 1801/03
Johann K. F. Rosenkranz (1805-1879), discípulo de Hegel, foi quem designou o nome “O Sistema da Vida Ética” (System der Sittlichkeit) aos manuscritos que constituem a obra de seu mestre. Segundo Rosenkranz, estes manuscritos faziam parte de um curso sobre Direito Natural que Hegel ministrou durante os anos de 1802 a 1805.
B. Bourgeios, G. Lukacs e F. Rosenzweig constroem uma sólida linha de argumentação capaz de mostrar que os primeiros sistemas hegelianos (escritos entre os anos de 1801 e 1803) são consequência necessária dos pensamentos adquiridos em seus períodos anteriores de formação, desde o ginásio em Stuttgart. Por uma questão de clareza e respeito ao tempo aqui disponibilizado, irei deter esta apresentação no modo que B. Bourgeois em “O pensamento político de Hegel” explica a formação do pensamento de juventude de Hegel.
Segundo Bourgeois, Hegel sempre demonstrou interesse pelas questões que culminam em suas primeiras tentativas de sistema, são elas indivíduo, sociedade e Estado. Dentre as tentativas está “O Sistema da Vida Ética”. Cito Bourgeois:
Se no amor que o aluno do ginásio de Stuttgart tem pela filosofia clássica se pode pressentir o ideal hegeliano, é no período seguinte, o dos anos de seminário em Tübingen (1788-1793), que esse ideal é afirmado como tal por Hegel. O problema de Hegel durante seus anos de formação, em Berna (1793-1796), em Frankfurt (1797-1800) e em Iena (1801-1807), será determinar os meios de realização desse ideal, que é, como sabemos, um ideal de liberdade. (BOURGEOIS, p.35).
O jovem Hegel vislumbra nos movimentos de construção da individualidade, da sociedade e do Estado as características essenciais para compreender a vida de um povo. Assim, sendo capaz de explicar cuidadosamente como se formam as três categorias, ele poderá encontrar os fundamentos da humanidade moderna e, por conseguinte, suas diversas manifestações.
A primeira característica ressaltada como fundamental no pensamento hegeliano é a constituição de seu ideal. O ideal hegeliano se desenha, essencialmente, contemplando o modo de vida grego antigo. O jovem filósofo observa na polis uma forma de vida ideal, é na cidade antiga que é possível ilustrar uma plena harmonia entre as diversas esferas da vida humana. É a organização da polis que revela para Hegel a insuficiência e a limitação do modo de vida moderno.
O jovem filósofo alemão, assim como muitos outros pensadores de seu tempo, vê na polis o lugar da realização plena do indivíduo, um sentir-se “em casa”, ou definido de modo mais exato, o estar-em-si-mesmo na cidade. Isto equivale a plena liberdade e plena felicidade.
A relação entre o ser particular (o indivíduo) e o ser universal (o Estado) é na cidade antiga um exemplo de como o sujeito pode se reconhecer na substância universal do mundo – o sujeito é quem determinará o conteúdo do Estado. Mas, é também imagem de como a substância universal reconhece a importância do particular. É neste duplo movimento de significação que reside uma bela harmonia das esferas da vida humana.
Uma vez que a cidade antiga é a harmonia das esferas da vida, o produto dela será a realização da liberdade e da felicidade. Isto quer dizer, que o mundo antigo encontrou uma identidade perfeita entre as categorias que compõem a vida humana, encontraram o estar-em-si-mesmo.
O sujeito particular participa da elaboração do seu ser mais elevado, que é o Estado, oferecendo o que lhe falta – a particularidade; e, o Estado retribui fornecendo a universalidade que o sujeito particular não possui. Ou seja, a cidade antiga é capaz de fazer uma equiparação perfeita entre particular e universal, produzindo espontaneamente os bens mais buscados pelo ser humano, a liberdade e a felicidade.
Neste modo de vida (o grego antigo) o homem reivindica a si mesmo uma vez que o seu trabalho mais elevado é em nome do Estado e o Estado é o trabalho para o homem. É aqui, onde o homem é senhor de si e do Estado que Hegel firmará o seu ideal de liberdade. O ideal de Hegel é o da liberdade que deve ser produto da harmonia entre as esferas da vida humana.Cito Bourgeois:
Em suma, na cidade antiga, o sujeito se reconhece totalmente na substância presente da pátria: “Catão abraçava inteiramente sua pátria, e a pátria preenchia sua alma por inteiro” (N, p.356). Tal é esse gênio livre e feliz pelo qual o pensamento sente agora uma profunda nostalgia (BOURGEOIS, p. 37).
Enquanto a cidade grega representa o estar-em-si-mesmo (ou a felicidade e a liberdade), a Alemanha do período de Hegel representa a exata oposição do ideal antigo.
Se o estar-em-si-mesmo, visto na realização da cidade antiga, é o espírito livre, a vida moderna é o fracasso da liberdade e da felicidade, pois ela promove rupturas e separação entre os âmbitos da vida humana. Os dois aspectos levantados como centrais na vida ética – a religião e o Estado -, são na modernidade pontos problemáticos e causas das rupturas.
A religião moderna promoveu uma ruptura brutal entre o que é terreno e profano e o que é celeste e divino. A ruptura é de tal forma radical que o terreno nunca poderá ser divino e o celeste sempre estará acima do profano. A separação entre terreno e celeste impõe um problema ao sujeito, ao ponto que o divino torna o terreno estranho ao homem e o terreno torna o celeste estranho ao homem. Definir duas possíveis moradas ao sujeito foi deixá-lo sem nenhuma. O homem não pode se sentir “em casa” nem no profano, nem no celeste.
Na esfera política o poder Despótico tratou de excluir os indivíduos da produção e manutenção do Estado. Alguns poucos homens cuidam de seus interesses em nome do Estado, isto porque o acúmulo de riquezas e de poder militar nas mãos de uma pequena aristocracia a deixou forte o bastante para sustentar a sobreposição sobre os demais indivíduos a ponto de rejeitá-los e excluí-los da participação na vida do Estado.
Em síntese, foi assim que o indivíduo moderno precisou se situar frente a ordem fragmentada do mundo – admitindo o estranhamento na religião e no Estado.
É em 1789, com o advento da Revolução Francesa, que Hegel irá se entusiasmar e acreditar, ao menos em primeiro momento, que os homens fizeram um esforço racional e histórico para reviver a polis grega.
O evento na França, representou para Hegel o pensamento crítico que se efetiva no mundo, foi o esforço para tornar o mundo pensado e tal aquisição permitiria o desenvolvimento de seu próprio devir histórico. O mundo pensado é passível de reflexão, isto significa, uma união entre participação efetiva do pensamento e crítica do pensamento como realidades históricas.
Foi na França da Revolução que o jovem filósofo alemão viu o re-surgimento da polis, a identidade entre indivíduos e o seu ser mais elevado mediados pelo uso da razão. Sendo assim, o seu ideal de liberdade estava tentando se desenvolver na França, e desta forma, com este entusiasmo, que Hegel firmou de vez o ideal de liberdade como ponto central de seu pensamento.
“Desde que o sol se mantém no firmamento e os planetas descrevem seu círculo ao redor dele, jamais se havia visto o homem se colocar no alto, isto é, no pensamento, e edificar a efetividade de acordo com este. Anaxágoras foi o primeiro a dizer que o nous, κµαδ, regra o mundo; mas somente agora o homem chegou a conhecer que o pensamento deve reger a efetividade espiritual. Foi, portanto, um magnífico raiar do sol. Todos os seres pensantes celebram juntos essa época. Uma emoção sublime reinou nesse tempo, um entusiasmo do espírito fez estremecer o mundo, como se então se tivesse chegado à reconciliação efetiva do divino com o mundo” (G11,p.557-558). (Bourgeois, pp.38-39)
Embora, posteriormente esta visão apaixonada pela Revolução seja alterada por uma maturidade intelectual, o entusiasmo causado é parte significativa para a afirmação do ideal de liberdade como possibilidade de efetivação histórica no pensamento hegeliano.
O estar-em-si-mesmo antigo era fruto espontâneo do modo de vida elaborado na cidade antiga. A relação entre o universal e o particular se dava de modo natural, porque existia uma coerência entre a religião e o Estado que visavam estimular a participação efetiva do indivíduo em seu ser mais elevado. Os deuses gregos tinham poder apenas sobre a natureza, isto deixou aberto para os indivíduos todo o campo da realização da liberdade humana. Apesar de todo poder dos deuses, os homens poderiam opor-se a eles com sua liberdade.
O Estado grego, por sua vez, só fazia sentido com a participação efetiva dos indivíduos em sua elaboração, por isso ele representa a verdadeira essência dos gregos antigos. O Estado era o âmbito da vida em que o sujeito trabalhava com muito prazer para desenvolver-se da melhor maneira possível, uma vez que o ser do Estado representava um produto dos sujeitos. O Estado visava a liberdade e a felicidade humana e, é por isso, que os indivíduos sentem enorme prazer em esforçar-se para desenvolver o Estado.
Já o ideal de liberdade moderno deve determinar-se como um esforço da razão para recriar uma harmonia entre as esferas da vida humana, ou um esforço para recriar a identidade entre as esferas da vida que se encontram fragmentadas na vida efetiva.
Enquanto a identidade grega era belo fruto da natureza, a identidade na modernidade só pode ser um esforço da razão em apropriar-se da vida, ou seja, desenvolver um projeto racional para promover a harmonia, tal como se deu no ideal trazido pelo empreendimento da Revolução Francesa.
Ou seja, a vida moderna conserva a ideia de harmonia prevista pela polis grega, mas a realização deve ser perante uma “luta” para reconquistar a própria vida e a ferramenta para tal empreendimento será a razão.
A restauração da polis só pode assim se operar se a religião, em vez de dividir o homem dentro dele mesmo, consagrar com toda sua influência a união do sagrado e do profano, do místico e do político. Mas essa mística política só pode existir com a destruição do misticismo reinante, que separa mística e política (Bourgeois, p. 44).
O primeiro modo que Hegel irá se valer para tentar realizar o ideal de liberdade será via o recurso à razão. Uma vez que a divisão interna do indivíduo é um problema, o homem com o apoio da “religião oficial” separa o mundo profano do mundo divino, o único modo de superar esta fragmentação visto por Hegel é tentar destruir os alicerces da “religião oficial” em nome de uma união entre o sagrado e profano.
A “religião oficial” se valeu da política em diversos momentos para fortalecer a ruptura entre o terreno e o celeste e é esta a sua lógica de proceder. Assim, como vale lembrar, que o poder Despótico em muitos casos fez da “religião oficial” ferramenta para excluir o indivíduo do âmbito da política.
A proposta de Hegel será fundamentar um “misticismo político”, ou seja, o filósofo buscará através do recurso à razão superar a religião e o Estado vigentes e isto significa construir um argumento capaz de mostrar que a vida infeliz e não livre é culpa da fragmentação proposta tanto pela política quanto pela religião moderna.
Se o meio preocupa mais Hegel que o fim, é que este está, desde Tübingen, perfeitamente determinado, ao passo que a fixação de um meio adequado e eficaz se revela difícil. Quando Hegel deixa Berna no final de 1796, a falência percebida do kantismo e o malogro do empreendimento revolucionário na França, em suma, o fracasso aparente do esforço conjugado dos povos e dos filósofos, que devia trazer de volta a cidade feliz, mergulham Hegel num “abatimento” que marca a crise frankfurtiana (Bourgeois, p.55).
O Iluminismo, principalmente Kant, propõe o uso puro da razão para retomar a ideia de liberdade, ou seja, a razão levada ao radical, em sentido lógico-formal, deve alcançar uma concepção de liberdade que se torne um imperativo no mundo.
No entanto, Hegel não pode assumir a concepção kantiana por causa do ideal de liberdade já assumido desde os anos de Tübingen. A liberdade para Hegel só pode ser uma construção do indivíduo que ao tomar posse do mundo, via participação da razão, irá exteriorizar-se na forma de um ser universal, que seria o ideal de liberdade já visto anteriormente.
A concepção kantiana é o oposto do ideal de Hegel. Para Kant a razão deve se exercitar até encontrar a ideia mais pura de liberdade e ao alcançar todos os indivíduos devem cumprir este imperativo como dever. Aos olhos de Hegel, a liberdade como imperativo é uma contradição à liberdade, pois tudo que é externo ao indivíduo e impõem-se ao indivíduo é uma forma de submeter o homem a escravidão. E mesmo que o senhor desta relação fosse a razão, Hegel não está disposto a aceitar esta ideia.
Já no que diz respeito ao empreendimento da Revolução Francesa, a liberdade assumiu as características do seu oposto, aqui já remete uma leitura posterior ao entusiasmo inicial. A Revolução depois que assumiu o poder do Estado impõe ao indivíduo que exista como livre, que por definição representa uma contradição, tal como a imposição exterior ao indivíduo visto no Iluminismo de Kant.
A Revolução no anseio de firmar a ideia de liberdade começou a impor o modo de agir do indivíduo particular e esta imposição foi a derrocada do empreendimento, convertendo a liberdade em terrorismo político.
Da crise de Frankfurt vai nascer a filosofia propriamente dita de Hegel; com efeito, é em Frankfurt que Hegel organizará seu projeto original numa filosofia pessoal já muito técnica, alimentada pelo estudo de Kant, Fichte e Schelling, é em Frankfurt que ele dará a seu ideal de juventude uma “forma reflexiva” e o “transforma num sistema” (C1, p.60) articulado em torno de alguns conceitos fundamentais (unidade, multiplicidade, totalidade, contradição ...). O sistema hegeliano é a reflexão, nesses conceitos, da unidade contida no ideal da bela totalidade livre e feliz. Mas na medida em que a reflexão é um processo de ob-jetivação, de oposição, de separação, refletir a unidade é destruí-la, e, já que para Hegel, em Frankfurt, o pensamento e o conceito estão ainda identificados à reflexão e ao entendimento, querer pensar a unidade, elaborá-la num sistema, em suma, filosofar, é contradizer a intensão pela realização, o conteúdo pela forma. O empreendimento que se propõe dar uma forma reflexiva ao ideal da totalidade só pode então, evitar a contradição do conteúdo (a unidade, a totalidade) remetendo a contradição ao seio da própria forma, negando esta nela mesma para fazê-la exprimir a totalidade do conteúdo, e isso destruindo a unilateralidade de cada determinação por sua união com a determinação oposta, isto é, criando conceitos anticonceituais cujo conteúdo seja a identidade de determinações opostas, por exemplo os conceitos de destino, de amor, de vida. Esses conceitos formulam ao mesmo tempo a oposição interna de seu conteúdo e a sua unidade: assim, a vida “não pode com justiça ser considerada unicamente como reunião, relação, mas deve simultaneamente sê-lo como oposição” (N, p. 348), ela é “a ligação da ligação e da não-ligação”(Ibid)(BOURGEOIS, p. 55-56).
O período frankfurtiano é marcado por um problema de cunho lógico-teórico. Hegel quer propor uma noção de sistema que dê conta de analisar o momento histórico: Como tornar a fragmentação da modernidade objeto de uma reflexão sob a ideia de totalidade?
Primeiramente Hegel deve assumir que a reflexão é um processo de separação, de oposição, já que neste momento de sua formação o pensamento e o conceito estão identificados com a reflexão e com o entendimento. A reflexão e o entendimento só podem ser obtidos a partir de uma separação entre sujeito e objeto, é um sujeito que reflete sobre algo que não é si próprio e é Outro. Enquanto o entendimento é acerca de algo (exterior), ratificando a separação entre sujeito e objeto.
O que salta aos olhos em considerar a reflexão como processo de separação é que inviabiliza o pensar uma unidade plena. A reflexão, neste sentido, impede a possibilidade de desenvolver um sistema, um filosofar, pois seria contradição entre a intenção de unidade e a realização de fragmentação, isto é uma contradição entre conteúdo e forma.
Tentando solucionar o problema anterior, Hegel só tem uma saída para propor seu empreendimento, onde o ideal se torna categoria de reflexão. O modo para evitar a contradição do conteúdo pela forma só pode ser solucionada remetendo a uma insuficiência da própria forma em explicar-se. A proposta seria: a forma deve perceber de modo imanente a contradição que abarca. Em outras palavras, a forma deveria negar a si própria para retirar dela o seu conteúdo. Isto faria com que as categorias objeto de reflexão destruísse seu caráter “auto-suficiente”, onde se considera explicação em si mesmo, fazendo com que esta unilateralidade estabelecida seja superada pela realização de uma união de cada categoria determinada com seu oposto para formar sua unidade. Bourgeois vai descrever este processo como a “criação de conceitos anti conceituais”. O exemplo dado pelo comentador pode esclarecer o que esta criação significa. A criação de uma identidade cujo conteúdo seja a determinação de categorias opostas, como por exemplo o conceito de amor, tal conceito só pode encontrar uma unidade verdadeira em oposição com o ódio, a identidade estabelece que um conceito é quem determina o significado do outro, a união entre conceitos que faz surgir uma unidade. O mesmo vale para o conceito de destino e acaso, ou de vida e morte, dentre outros.
Uma filosofia que produz conceitos anti conceituais (ou contraditórios) é a negação do próprio conceito. O conceito é justamente uma determinação da unidade analítica, é produto do entendimento.
Hegel irá considerar que a verdade do ser é o dever-ser, a concepção desta categoria faz da história uma determinação do dever-ser, em outras palavras, a transformação e o movimento histórico são determinados pelo dever-ser, ou pela vontade de ser e de se realizar. O que Bourgeois chama de “duplo formalismo”. A realidade histórica mostra a vida infeliz e não livre (este é seu ser) e a tarefa da reflexão e do entendimento é formular um projeto de transformação (superação) do ser. A categoria teórica (formal) que proporciona a elaboração de tal projeto de transformação é o dever-ser, ao ponto que o dever-ser se realiza na história e se torna ser efetivo ele deve se submeter a negação novamente e este é movimento proposto.
Uma breve apresentação da estrutura argumentativa da obra “O Sistema da Vida Ética”
A proposta de Hegel em seu escrito “O Sistema da Vida Ética” (texto póstumo) é compreender, ao menos como primeira tentativa, de forma rigorosa e sistemática o “modo de ser” da humanidade moderna. O filósofo alemão foi levado, como vimos na primeira parte desta comunicação, desde os primeiros anos de sua formação a entender a relação entre indivíduo, sociedade e Estado. As conclusões sobre como surge e funciona o Espírito Objetivo do modo de ser de um povo foi sistematizado por Hegel da seguinte forma.
O escrito de Hegel acerca da vida ética (ou eticidade) é composto por três partes. O primeiro momento será a reflexão sobre o movimento que inicia a eticidade absoluta ou o modo de ser que constitui o significado do espírito moderno. Hegel parte da gênese da vida ética, a eticidade natural, baseando-se em um movimento intrínseco das categorias que formam a vida humana – intuição e conceito, universal e particular, respectivamente – o filósofo alemão penetra em um universo rigoroso do processo de definição da individualidade. Ou, como diz Artur Morão (IN: HEGEL, 1991, p.11):
O sistema, que se funda na subsunção recíproca do indivíduo e do universal, articula-se m 3 partes: A primeira - A Eticidade natural - engloba o domínio das actividades naturais, que promanam da necessidade e do instinto, bem como as relações sociais que lhes estão adscritas: trabalho, uso de utensílios, posse; inteligência, linguagem; relação homem-mulher, pais-filho, senhor-servo. À família segue-se a vida social, na forma de relações de intercâmbio económico e jurídico (propriedade, troca e contrato). Os indivíduos surgem aqui como figuras jurídicas e constituem simplesmente uma unidade formal, abstractamente quantitativa (MORÃO; IN: HEGEL, 1991, p.10).
O segundo momento do estudo de Hegel revela os mecanismos de construção da vida social, desde sua forma mais simples que é a família até a concepção de sociedade civil. Nesta parte, revelam-se relações necessárias entre liberdade individual (que não poderá ser auto-suficiência) e a vida social com a eticidade.
A segunda parte - O Negativo ou a liberdade ou o Crime - ocupa-se de fenômenos como a aniquilação física, o roubo, a escravatura, a vingança e a guerra; para Hegel, a função destas últimas consiste em negar a auto-suficiência e a absolutização unilateral da “totalidade do indivíduo” como pessoa. Como, porém, desponta o perigo de tudo se perder, inclusive a vida, emerge assim a condição necessária para o aparecimento da “eticidade absoluta”, na qual se reconciliam a eticidade natural e a liberdade individual (MORÃO; IN: HEGEL, 1991, p. 10).
Na terceira e última parte do texto, Hegel irá analisar a instituição mais elevada da eticidade absoluta, o Estado. Neste momento ele procura revelar os mecanismos necessários para satisfazer o espírito, ou a eticidade, do povo. É somente na elaboração de um Estado que tem como base a eticidade absoluta que se sustenta a ideia de Espírito, ou seja, a vida do povo deve exprimir-se em sua última instância (a universal), no âmbito do Estado.
Na terceira parte, finalmente, Hegel analisa as instituições do Estado especificado como monarquia, a articulação das diversas ordens (nobreza, burguesia e campesinato) e os sistemas de governo, ou seja, o “sistema das necessidades”, que exprime a mútua dependência económica dos indivíduos entre si, o “sistema da justiça”, e o “sistema da educação” que exerce uma função tanto policial como educativa (MORÃO; IN: HEGEL, 1991, p. 10).
Conclusão - Indicações de caminhos para uma leitura rigorosa de “O Sistema da Vida Ética”
A proposta deste texto era ofertar uma possibilidade de compreensão mais segura da leitura da obra “O Sistema da Vida Ética” de Hegel. Sem dúvida o tratamento prioritário das condições que permitiram ao jovem Hegel escrever tal obra tem a finalidade de buscar um sentido complexo da obra e entender que sua linguagem, sua lógica e sua argumentação se desenvolve através de um longo processo de reflexão sobre as temáticas da política e da ética.
Para ampliar o entendimento sobre esta obra de Hegel os textos básicos que serviram de base para enriquecer este trabalho foram:
BIBLIOGRAFIA
-BOURGEOIS, B. O pensamento político de Hegel. Rio de Janeiro: UNISINOS,2000.
-HEGEL, G.W.F. O sistema da vida ética. Lisboa: Edições 70, 1991.
LUKACS, G. El joven Hegel y los problemas de la sociedad capitalista.Barcelona: Ediciones Grijalbo, 1970.
ROSENZWEIG, F. Hegel e o estado. São Paulo: Perspectiva, 2008.
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Att.
Prof. Ricardo Lopes
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