Para início de conversa...
Grande parte do globo terrestre vive, hoje, sob o regime político de Estado-Nacional de cunho democrático.
Muito embora devesse ser de conhecimento amplo o que significa viver em um Estado democrático, nós, contemporâneos, temos muitas dificuldades em assimilar as características que regem o bom desenvolvimento deste modelo paradigmático de vivência política.
Em especial aqui, no Brasil, vivemos constantemente crises de instituições democráticas. Aparentemente temos grandes dificuldades em estabelecer ordem seguindo os princípios da democracia. Esta dificuldade em fazer a manutenção social e do Estado segundo princípios democráticos dão a sensação de que estamos em ruína e somente um regime de força pode estabelecer a ordem e a manutenção das instituições. Mas, as coisas são realmente assim? Democracias verdadeiras podem dar certo?
Para pensar sobre as questões relativas a vivência em Estados democráticos proponho algumas reflexões introdutórias utilizando como referência a primeira manifestação deste regime na História conhecida. Vamos rememorar os princípios democráticos gregos para entender virtudes e falhas do nosso modo de lidar com a democracia.
Neste momento vamos nos deter em uma fonte básica primária, para que em momentos subsequentes possamos ampliar nossas investigações sobre as origens históricas da democracia.
Neste momento vamos nos deter em uma fonte básica primária, para que em momentos subsequentes possamos ampliar nossas investigações sobre as origens históricas da democracia.
Uma fonte básica primária: A democracia de Renato Janine Ribeiro.
Para iniciar nossa reflexão gostaria de sugerir um pequeno livro publicado pela Publifolha da coleção "Folha Explica" (ver referência bibliográfica no final deste texto), chamado A democracia. Escrito pelo Professor Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP), utiliza uma linguagem acessível e simples para que todos possam ter algumas referências para compreender as democracias.
Para saber mais sobre a importância e o reconhecimento deste prestigiado professor recomendo que acessem: http://renatojanine.pro.br/, https://www.facebook.com/renato.janineribeiro, http://filosofia.fflch.usp.br/docentes/janine e http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4783966Z8.
Neste momento nos interessa particularmente o primeiro capítulo da obra intitulado "1. A DEMOCRACIA DIRETA", onde o Professor dedicará um esforço para explicar as origens conhecidas dos regimes democráticos, especialmente em algumas cidades-Estado da Grécia Antiga.
"A palavra democracia vem do grego (demos, povo; kratos, poder) e significa poder do povo. Pode estar no governo uma só pessoa, ou um grupo, e ainda tratar-se de uma democracia - desde que o poder, em última análise, seja do povo. O fundamental é que o povo escolha o indivíduo ou o grupo que governa, e que controle como ele governa" (RIBEIRO, 2013, p.8).
A própria etimologia da palavra democracia já revela traços importantes de seu fundamento e de sua estrutura de funcionamento. Em primeiro lugar, como deixa explícito o Professor, a democracia não é um simples modelo de funcionamento da máquina estatal, mas sim o fundamento legítimo de tal funcionamento. A democracia é o procedimento político que centraliza o poder na categoria chamada povo. Quem governa, isto é, quem é responsável pela manutenção da máquina estatal deve se submeter ao poder do povo.
O protagonismo numa democracia deve ser o poder do povo, isto faz com que os instrumentos que permitem a execução da vida política, dentre eles o Estado, sejam um meio para a realização deste poder. Desta perspectiva deve ficar evidente que a democracia não é estritamente política, mas também ética, no sentido de que representa muito mais do que os interesses de funcionamento da cidade, mas também, representa os valores e as aspirações da vida do povo. Dito de outro modo, a democracia não é apenas um regime de ordenação da vida social, é essencialmente a vida realizada do povo, por isso uma concepção ética e política.
Para tentar ilustrar o funcionamento desta concepção ético-política vale entender em linhas gerais como procederam na antiguidade grega.
O maior exemplo que dispomos de realização da democracia que é sabida até no senso comum é o caso da Atenas do século V a.C.. Embora quase sempre digamos que a democracia surgiu na Grécia Antiga é preciso esclarecer que não existia uma Grécia Antiga, o que nós chamamos de Grécia eram na verdade um conjunto de cidades-Estado independentes (as chamadas polis), isto é, cada cidade possuía um funcionamento político independente das cidades vizinhas. O que chamamos de Grécia é na verdade uma certa unidade linguística e cultural, mas não política.
De modo geral, inicialmente as cidades gregas eram governadas por sistemas de reinados, tal como se pode observar nas descrições das cidades realizadas pelas grandes obras literárias-históricas da época, como presente nas obras de Homero. A grande mudança ocorrida foi:
"O poder, que ficava dentro dos palácios, oculto aos súditos, passa à praça pública, vai para tó mésson, "o meio", o centro da aglomeração urbana. Adquire transparência, visibilidade. Assim começa a democracia: o poder de misterioso, se torna público, como mostra Vernant¹. Em Atenas se concentra esse novo modo de praticar - e pensar - o poder" (RIBEIRO, 2013, pp.8-9). [Para saber mais sobre Jean-Piere Vernant: https://www.independent.co.uk/news/obituaries/jean-pierre-vernant-431606.html]
Ainda de modo geral podemos dizer que para o conjunto de cidades-Estado possuíam três formas de regimes políticos vigentes, as monarquias, as aristocracias e as democracias. As diferenças entre cada regime político consistiam no número de pessoas exercendo o poder na cidade. Como a própria etimologia já explicita, na monarquia uma só pessoa detém o poder (mono=um). Na aristocracia o poder era centralizado na mão dos melhores (aristoi=excelentes). Na democracia se fundava um regime de legitimação de igualdade, isto é, o poder era exercido pelo "povo comum", não eram os feitos especiais que determinavam maior capacidade para exercer o poder, nem nenhum outro critério, tal como hereditariedade, sabedoria, etc.
É neste princípio de igualdade entre os que exercem o poder que reside a especialidade do regime democrático. As origens desta igualdade reside no deslocamento do poder do palácio para a praça, a ágora. O termo ágora significa "praça de decisões"
Nas cidades democráticas da Grécia a praça possui especial valor, porque é nela que o povo exerce a sua liberdade, fato que eles consideravam distintivo de outros povos, povos chamados de bárbaros. O modo de manifestar a liberdade era exercer o poder diretamente, por isso, na lei ateniense, por exemplo, quarenta reuniões ordinárias eram previstas em lei (no século IV a.C.), o que equivale a uma assembleia participativa a cada nove dias, fora a possibilidade de chamar por assembleias extraordinárias, que elevariam ainda mais a possibilidade de exercer o poder (RIBEIRO, 2013, p.9).
Nas assembleias constantes, os gregos, especialmente os democráticos, chamavam o povo para discutir, deliberar e decidir as questões que interessavam a todos. Na reunião que contava com algumas milhares de pessoas eram determinados através da participação direta os rumos da cidade.
Vale o adendo de que os que poderiam participar do exercício do poder na praça de decisões eram os cidadãos e esta categoria representava o conjunto de homens livres da cidade, deixando de lado uma parte considerável, os chamados não livres, da participação do exercício do poder. Sendo a igualdade o grande recurso para consolidar o exercício do poder, os requisitos para exercê-lo era a identificação com a liberdade, por isso, escravos, estrangeiros, mulheres e menores de idade não podiam participar da democracia ateniense.
O princípio da igualdade entre os cidadãos era tão presente que na democracia antiga quase não se elegia representantes, não haviam ou quase não haviam cargos fixos que permitissem a eleição de alguém que ficaria responsável pelos encargos. A regra era que as decisões deviam ser tomadas em assembleias e para aplica-la se incumbia um grupo de pessoas, mas estas pessoas não seriam eleitas e sim sorteadas.
A justificativa do sorteio é simples, nas palavras do Professor:
"Por quê? A explicação é simples. A eleição cria distinções. Se escolho, pelo voto, quem vai ocupar um cargo permanente - ou exercer um encargo temporário -, minha escolha se pauta pela qualidade. Procuro eleger quem acho melhor. Mas o lugar do melhor é na aristocracia! A democracia é um regime de iguais. Portanto, todos podem exercer qualquer função" (RIBEIRO, 2013, pp.10-11).
Em suma, como o princípio básico para a consolidação da democracia é a igualdade entre todos que compõe a categoria povo, por que eleger alguns melhores do que outros para algo? O que os gregos democráticos compreenderam é que se todos os cidadãos são iguais e o modo pelo qual manter a igualdade é que todos podem exercer qualquer função, todos são aptos a desenvolver igualmente as decisões estipuladas em assembleia.
A exceção à regra, isto é, as escolhas que não eram feitas através de sorteio, estavam entre os cargos de chefes militares e alguns poucos outros cargos, porque ali se exigiam um certo saber técnico para proceder no cotidiano. Mas, os cargos que fugiam a regra ainda seriam submetidos ao poder do povo.
O exemplo mais usual na filosofia que pode ilustrar o funcionamento dos sorteios que determinam encargos temporários para realizar a manutenção da vida política é a formação de corpo de jurados, como nas palavras do Professor:
"Um exemplo é o júri. A frequência à ágora é grande, chegando a alguns milhares, numa Atenas que tem de 30 mil a 40 mil cidadãos. Mas os principais julgamentos são atribuídos a um tribunal especial, cujos membros são sorteados, o que hoje chamamos de júri. Temos um caso célebre, histórico: o julgamento de Sócrates. O filósofo é julgado, em 399 a.C., por 501 pessoas. Como 281 o condenam e 220 votam pela absolvição, ele é sentenciado à morte (RIBEIRO, 2013, p.11).
Podemos perceber que o funcionamento desta democracia é pautado pelas demandas que surgem na vida da cidade, como uma espécie da participação nos acontecimentos e nas decisões que julgam importantes para a vida livre.
Dentre os assuntos que eram discutidos na ágora, na praça das decisões, temos que lembrar que na época não existiam as complexidades sistêmicas que possuem as nossas formas de vida contemporânea. Basicamente o que era discutido na ágora era: a guerra e a paz, os assuntos do funcionamento da cidade, mas, como destaca do Professor Ribeiro, uma parte razoável das discussões parece girar em torno da religião e das festas religiosas.
Dito de outro modo, os encontros ordinários possuíam a finalidade de discutir festas religiosas e dividir as tarefas para a manutenção da cidade. Imagine que na antiguidade a complexidade das relações e das condições de existência possuíam uma forma muito menor que as nossas.
Por fim, é claro que a democracia antiga foi questionada e a primeira crítica foi elabora pelo filósofo antigo Platão, onde ele percebe alguns problemas que julga decisivos neste modelo de vida, levando em consideração alguns aspectos da justiça exercida na Atenas sobre o regime democrático. Mas, é evidente que todos que conhecem o funcionamento das democracias da antiguidade suspiram pela beleza de seu funcionamento, a participação na cidade era direta, era cheia de significado para o cidadão, uma vez que cada cidadão realiza a si na cidade e a cidade é o espaço para permitir ao cidadão a construção de algo maior do que si.
Neste breve texto foram apresentadas algumas referências preliminares para entender as origens da democracia. Em outras ocasiões vamos ampliar os conhecimentos, mas vale essa introdução. O grande fato que gostaria de destacar é que na antiguidade a consolidação da democracia permitiu a ação direta na execução e na manutenção da vida coletiva, da vida política, como expressão da vida ética.
Como destaque derradeiro, esta obra de referência, assim como este texto produzido tendo ele por base, tentam esclarecer para um público geral alguns aspectos conceituais básicos para a compreensão da democracia. A partir dos próximos textos vamos aprofundar referências acadêmicas e detalhar melhor as nuances e as especificidades das origens democráticas na antiguidade grega.
Referência Bibliográfica:
- RIBEIRO, Renato Janine. A democracia. São Paulo: PubliFolha, 2013 - (Coleção Folha Explica).
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Att.
Prof. Ricardo Lopes
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