Há tempos observamos na esfera comum queixas ou defesas do politicamente correto. Vemos algumas pessoas que se vangloriam por "serem politicamente incorretas", vemos gente dizendo que "o politicamente correto acabou com a possibilidade de dizer a verdade".
Infelizmente a minha ignorância dificulta o entendimento do que os discursos a favor ou contra o politicamente correto. Aparentemente, em minha modesta visão de mundo, é demasiado óbvio que o politicamente correto é uma decisão boa para a realização da vida coletiva. Afinal, por que alguém escolheria ser politicamente incorreto? Por que alguém deliberadamente escolheria fazer errado? Talvez eu não compreenda bem a expressão e, justamente por isso, decidi investigar a respeito.
Em primeiro lugar, para entender essa questão, parece que o problema do "politicamente correto" ou do "politicamente incorreto" estão no âmbito da semântica, porque diferentes concepções epistemológicas produzem sentidos diferentes para as expressões. Para tentar elucidar, vamos procurar uma conceitual aos termos.
Luiza Bandeira (2018) escreveu um pequeno artigo para o portal "Nexo Jornal" onde investiga as origens e o uso histórico das expressões que geram inúmeras controvérsias no debate público. Segundo esta autora as origens da expressão não são consensuais dentre os pesquisadores (as), ainda, mas, o primeiro registro encontrado até então remonta a 1793, quando o termo foi utilizado do modo mais literal possível, ou seja, o "politicamente correto" expressava o modo certo de fazer política. Este registro está em um documento da Suprema Corte Americana, instituição jurídica dos Estados Unidos da América. O uso da expressão era para assegurar o bem dizer, tal como "deve-se dizer em um brinde: 'às pessoas dos Estados Unidos' ao invés de 'aos Estados Unidos'".
O uso demonstrado pela Suprema Corte no século XVIII revela que para aqueles magistrados deveria colocar as pessoas como centro da constituição do Estado e não o Estado como instituição mecânica. Para legitimar estas ideias que representavam com maior fidelidade as decisões da instituição, usou-se a expressão "politicamente correto" como a referência que permitia desenvolver de modo correto a vida política.
Outra possível origem da expressão "politicamente correto" seria o regime stalinista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas aproximadamente nos anos de 1930. Segundo está possibilidade o termo deveria designar o sentido de que "os interesses do partido estavam acima da própria realidade", ou seja, uma afirmação que poderia ser factualmente correto poderia ser incorreta politicamente e, em nome da manutenção do regime, deveriam se submeter ao "politicamente correto".
A terceira possível origem da expressão "politicamente correto" é que esta foi disseminada nos Estados Unidos da América nas décadas de 1960 e 1970 com o uso mais próximo do que parece querer ser usual hoje. A expressão teria sido "emprestada" de um discurso do líder chinês Mao Tsé-Tung, onde as pessoas da esquerda estadunidense utilizavam de modo "jocoso", revelando aquilo que era dito como "politicamente correto" como algo dogmático, ou que aparecia como uma espécie de certa absoluta que era de algum modo duvidosa.
As referências de Luiza Bandeira (2018) são reconhecidas por sua credibilidade, tal como a Harvard Political Reviw, o professor Angelo M. Codevilla da Universidade de Boston e a professora Ruth Perry do MIT. O artigo é curto, mas vale muito a leitura. Aqui apenas destaquei algumas ideias que parecem úteis para o meu empreendimento de compreender os diferentes usos do termo "politicamente correto".
Com base nas possíveis três origens é possível notar que: a primeira prioriza o uso no sentido literal de "politicamente correto", ou como expressão daquilo que é o correto para o desenvolvimento das relações políticas; a segunda, cunhada no regime stalinista soviético o "politicamente correto" aparece como uma espécie de meta-realidade, ou seja, o objetivo maior da esfera política é garantir a unidade do Estado, mesmo que isso possa ferir a realidade factual; a terceira, o termo serve como ironia para aquilo que é apresentado de forma dogmática, ou seja, como expressão irônica daquilo que se apresenta como verdade, mas que é duvidoso.
Até aqui é possível concluir que existem ao menos três variações semânticas para o emprego da expressão "politicamente correto", no entanto, as três formas são distintas, como já foi apresentado, e, até, antagônica, caso seja possível inferir que em um extremo reside a literalidade e no outro a falsidade do dito. Isto não parece resolver o problema, afinal, ser ou não ser "politicamente correto"?
Talvez seja útil adicionar mais alguns elementos antes de tirar conclusões. A professora Moira Weigel, pesquisadora associada da Universidade de Harvard, dedicou-se a pesquisa desta expressão e concluiu que "o discurso contra o "politicamente correto" é uma retórica que inviabiliza o debate democrático". Vamos explorar como ela chegou a esta conclusão para percorrer as nossas próprias ideias e concordar ou discordar dela.
Segundo Weigel (2018) não é tão óbvia a tentativa de traçar uma história do uso da expressão "politicamente correto", uma vez que as palavras isoladamente são recorrentes, como separar o uso isolado de cada palavra da expressão? No entanto, ela percebeu, no decorrer de suas pesquisas, que buscar a história do "politicamente correto" é ao mesmo tempo desbravar a história do que é o "politicamente incorreto". Ela trabalha com a possibilidade de ambas as expressões terem origem nos Estados Unidos da América, a sua usualidade passou a ser pouco recorrente entre os membros da New left (movimento de esquerda do período da década de 1930) e vai adquirir um uso mais recorrente nas décadas de 1960 e 1970 e passa a ser usado no sentido mais próximo do que temos hoje a partir da década de 1990.
A partir do momento que a expressão "politicamente correto" passou a ser utilizada em sentido de chacota ou de comentário jocoso, passou-se a utilizar a expressão para denunciar os procedimentos discursivos, morais e políticos que estariam supostamente inviabilizando o exercício da liberdade humana. A força da expressão, entretanto, surge com a apropriação da "direita" estadunidense, que utilizam a expressão para atacar o "politicamente correto".
Weigel (2018) chega a afirmar que a narrativa contra o "politicamente correto" foi apropriado por movimentos de "direita" para deslegitimar os discursos das Universidades e da Imprensa Tradicional dos Estados Unidos da América. Ou seja, aquilo que em primeiro momento servia para criar desconfiança nos oponentes políticos passou a ser estendido a todos os discursos que poderiam se opor a suas posições, isto ocorreu especialmente entre as décadas de 1980 e 1990.
Quando questionada se estas críticas realizadas pela "direita" norte-americana estavam relacionadas a mudanças ou transformações sociais e demográficas, a pesquisadora afirma: "Sim, certamente. Havia mudanças sociais ocorrendo nas universidades. As mulheres estavam entrando, havia mais negros nas universidades. Em 1965 há uma reforma migratória que traz pessoas do leste asiático para os Estados Unidos e, no início dos anos 1990, chegam cada vez mais imigrantes latino-americanos. Em certo modo, a narrativa do politicamente correto é uma reação a uma série de mudanças sociais e demográficas que estão acontecendo. Mas essa narrativa passa uma ideia de que existe um pequeno grupo, formado por professores e pela própria imprensa, que está forçando essas mudanças de cima para baixo, às custas das 'pessoas comuns'. Num momento em que muitos norte-americanos brancos estão perdendo os seus empregos em razão da desindustrialização, a história do politicamente correto - sobre um bando de intelectuais judeus ou não brancos tomando o controle das universidades e da imprensa e fazendo com que as 'pessoas comuns' se sintam desamparadas ou mesmo envergonhadas - ressoa. É uma narrativa que a direita usa para manter o poder, para a classe trabalhadora embarcar numa aliança com a agenda corporativa do big business em meio às mudanças demográficas e culturais" (WEIGEL, 2018).
O interessante da resposta de Weigel (2018) é que existe uma relação, coincidência ou não, entre o empoderamento das tradicionalmente chamadas "minorias" pelas pessoas comuns com um discurso que busca acabar com a legitimidade deste discurso através de uma retórica que acusa a "minoria" de ter o domínio de um determinado contexto, sendo ela a opressora do "cidadão comum". Os ataques contra o "politicamente correto" ganham força quando aqueles que estavam fora do exercício decisório da sociedade assumem papéis inéditos na sociedade e fazem supostamente uso deste poder para legitimar a si mesmos.
A pesquisadora é extremamente pontual para encontrar evidências históricas e sociais que determinam o uso pejorativo do "politicamente correto", isto demonstra que a expressão não é neutra, ou pautada por literalidade, mas, é sim, um instrumento ideológico, um determinante do "jogo político", ou, ainda, um véu que dificulta o entendimento pleno da realidade por aqueles que fazem parte das "pessoas comuns".
Em termos práticos, a pesquisadora revela inúmeros casos de como o ataque ao "politicamente correto" ocorre na forma de discursos misógenos, racistas, xenófobos, etc. Não me parece necessário reproduzir tais casos, mas eles podem ser encontrados na referência da pesquisa.
Dado os usos práticos e políticos, da expressão "politicamente correto" por uma específica categoria política, a direita tradicional e a extrema direita, a expressão passou a transmitir para as pessoas comuns que a afirmação das "verdades" deveriam ser manifestas sem se importar com as consequências, porque supostamente representam a verdade. Talvez isso explique a grande adesão ao discurso crítico do "politicamente correto".
Em outras palavras, os críticos do "politicamente correto" utilizam a ideia de que o discurso que foi conquistado historicamente pelas minorias são ilusórios, porque inviabilizam a manifestação da "verdade", mas não coloca em cheque o próprio discurso proferido como "politicamente incorreto". Podemos compreender estes usos como ferramentas retóricas, ou seja, em nome do desafio que parece corajoso contra o "politicamente correto" se sustenta a validade do discurso, mas isso é o bastante?
Talvez para testar a validade deste recurso retórico seja útil fazer uso de um exemplo da esfera epistemológica e posteriormente um exemplo do campo social.
De uma perspectiva científica-acadêmica, podemos dizer de modo geral sem perder rigor, que todo conhecimento afirmado se legitima sobre princípios que são consensuais e que se previne contra a arbitrariedade através da possibilidade da falseabilidade, ou seja, dadas condições mais adequadas de entendimento sobre um fenômeno, um paradigma novo que é capaz de explicá-lo pode refutar a afirmação anterior que tem sua validade superada pelo novo. Podemos pensar na diferença entre a física newtoniana e a física relativa (proposta a partir da validação do pensamento de Einstein), que talvez seja de conhecimento de todos. Os pesquisadores (as) da física utilizam o sistema newtoniano até o seu limite, estabelecendo até que ponto ele é capaz de responder satisfatoriamente aos problemas dos fenômenos da realidade, a partir do momento que este paradigma de referência não dá conta dos problemas, procuram novas bases para sustentar os conhecimentos e, assim, Einstein buscou consolidar novas bases para o conhecimento físico, bases que permitem trabalhar e responder com maior validade aos problemas investigados. Caso você queira compreender melhor como isso se dá, basta estudar a História da Ciência, ali são demonstrados como sistemas de pensamento explicativos de fenômenos são formados, reformados e como constroem validades e invalidades.
Saindo da temática da epistemologia e entrando novamente no âmbito político-moral, podemos elencar como exemplo afirmações que deveriam soar estranhas, mas, inversamente, tem ganhado força nos discursos. Vemos personalidades que alcançam grandes públicos e até que representam em funções políticas afirmar coisas como: "sou preconceituoso, com muito orgulho", "todo mundo sabe que as mulheres são loucas", "pessoas nascidas em determinado lugar são depravadas, são violadoras dos bons costumes, por isso não queremos proximidade com elas", "tal população é terrorista", "o filho virá gay porque faltou porrada", dentre tantas outras da mesma ordem.
Atitudes preconceituosas são dignas de orgulho? As mulheres são loucas? Todas as pessoas de uma dada origem são depravas? O que estamos chamando de depravado? Pessoas de culturas diferentes podem ser chamadas de portadoras de costumes ruins? É possível toda uma nação ser terrorista? Porque os que agem com violência contra nós são chamados de terroristas e quando nós exercemos violência sobre os outros nos consideramos heróis? A quantidade de "porrada" que alguém toma é o que determina a sua sexualidade e o seu gênero?
Diferente das questões epistemológicas, que podem ser observadas no desenvolvimento da ciência e do pensamento acadêmico, já exemplificados à luz das ciências físicas, as afirmações que se dizem "politicamente incorretas" para poder expressar a verdade não chegam minimamente perto de responder perguntas simples, como as que foram propostas a pouco. Ou seja, o que legitima na esfera discursiva afirmações do "politicamente incorreto" é apenas uma convenção anterior que diz que o "politicamente correto" é ruim e por isso, qualquer coisa que o desafie estaria certo, mas está?
Não estou, ainda, propondo nenhum nível de sofisticação intelectual, nem a necessidade de tratar profundamente as ciências humanas, sociais e antropológicas. As afirmações propostas pelo "politicamente incorreto" de nossos tempos age como uma visão distorcida da realidade, algo que poderia ser chamado de ferramenta ideológica que é utilizada por uma classe de pessoas para defender ideias absurdas, que se valem de um contexto legitimador de uma violência sobre grupos que são compreendidos como minorias e que fizeram através da luta social histórica a oportunidade de legitimar a sua identidade.
Caso alguém ainda pergunte: o "politicamente correto" ataca a liberdade de expressão e de pensamento? Aquilo que estamos impedidos de dizer na esfera pública é uma ameaça a nossa liberdade? Definitivamente não! O "politicamente correto" é a única via para respeitar a liberdade conquistada através dos movimentos de reconhecimento de identidade realizados ao longo da história. "Minorias" conquistaram direitos, mulheres, negros, indígenas ou habitantes nativos, religiosidades, etc, foram todas construídas enfrentando uma rejeição, uma tentativa de aniquilação e ao conquistar espaços legítimos do funcionamento político da nação podem e devem fazer valer o fruto de sua conquista, ou seja, não é a privação de quem já estava inserido na política, é a incorporação de quem não estava. Não é privação de direitos para os que já estão atendidos pelos interesses sociais, é o reconhecimento de quem estava invisível. Quem questiona o "politicamente correto" está erroneamente acreditando que está perdendo espaço, quando na verdade está com seu consentimento pessoal ou por força social, permitindo igualdade entre os diferentes seguimentos que constituem a mesma sociedade.
O "politicamente correto", tal como se apresenta em nossos dias, permite a liberdade política, destaca e enfatiza as consequências e as responsabilidades de cada afirmação, de cada discurso. Tanto do ponto de vista epistêmico, quanto do ponto de vista de organização social e política, quem ataca o "politicamente correto" está lutando contra as transformações que foram fundadas e legitimadas através de ações históricas, que podemos conhecer, reconhecer e discutir sobre.
A liberdade de expressão, de pensamento e de conduta são amplamente defendidos pelo espaço do "politicamente correto", o que não cabe é a retórica perversa, saberes inconsistentes ou condutas preconceituosas que violentem agentes sociais reconhecidos. Não podemos privilegiar alguns em nome de outros. Ainda, o politicamente correto pode nos ajudar a perceber quem está sendo excluído, para que possamos colocá-los dentro de nossa sociedade, respeitando suas características identitárias.
Talvez, o "politicamente correto" seja a grande expressão de uma ideia verdadeiramente democrática, ou seja, somente polindo nossos discursos, compreendendo as lutas pelo reconhecimento das identidades das minorias, nós saímos de um regime unilateral, que atende alguns e oprime outros, transformando no trabalho coletivo, das diferenças, para construção da unidade nacional ou do reconhecimento internacional.
Não se trata de censurar o que se define como "politicamente incorreto", trata-se de compreender que ele deturpa a realidade, confunde e, por isso, estabelece sobrevida aquilo que já devia estar superado, ao que já não dá conta de compreender as demandas de nossa realidade.
Referências Bibliográficas:
Visitados em 19.01.2019
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Atenciosamente.
Prof. Ricardo Lopes
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