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Doxa: ou sobre a opinião


Saudações fraternas.

De tempos em tempos notamos com uma nitidez maior que a cosmovisão popular, ou aquilo que pode ser chamado de senso comum, é frágil, simbolicamente confusa, logicamente inconsistente, esteticamente desconfortável, politicamente violento, eticamente problemático e empiricamente causadora de conflitos. Talvez estejamos num destes tempos de nitidez exacerbada.

Nas ruas notamos a alienação, onde cada pessoa se protege em um microuniverso, o universo da individualidade. O diagnóstico do niilismo não é tão recente, mas mesmo assim não conseguimos tornar este assunto a pauta prioritária da reflexão popular. A individualização e as consequências oriundas dela não conseguem pensar a si mesmas nem em momentos de crise profunda. Ainda, é preciso considerar que este sistema de pensamento que valoriza uma individualização se reproduz sob a forma de cultura de massa, ou seja, talvez possamos chamar de suposta individualização.
Nas redes sociais notamos mais uma manifestação da proteção de microuniversos, bolhas de proteção de uma suposta individualidade, que talvez não seja compreendida humanamente, mas, que sem dúvida é base para que os algoritmos trabalhem neste espaço. Tal individualização, novamente, não compreende a si e nem as consequências derivadas dela.

Então, o que fazer?

Seria muita audácia propor uma resposta, se é que ela existe. Mas, sem dúvida existem caminhos a serem percorridos por nossos intelectos.
Muito difundida no senso comum, a opinião tornou-se em muitas instâncias a métrica para a escolha. Mais de uma vez a esfera da discussão e do debate se converteram em uma exposição desconexa de comentários pessoais e momentaneamente válidos. Neste modo de operação, criamos uma cultura das narrativas individualizadas, das opiniões que tentam se consolidar através da autoridade social, ou da relatividade como justificativa para nossa insuficiência de capacidade intelectual.

As opiniões pessoais são importantes, mas elas deveriam ficar limitadas ao seu lugar e deveria ser consciente de suas severas limitações.
Gosto de exemplificar o lugar da opinião com um fenômeno bastante conhecido aqui no Brasil. O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) ocorre todo ano e milhares de pessoas de todos os Estados realizam uma avaliação para mensurar o nível de ensino básico que tiveram e acessarem, de acordo com as suas condições, o ensino superior. No exame existem as questões de cunho tradicional/científicas onde de modo objetivo se testa habilidades das diferentes áreas que compõe os saberes humanos. E, também, existe uma parte da avaliação onde se verifica a capacidade de organizar argumentos de forma dissertativa, o popular artigo de opinião.

Nesta etapa de dissertação do Exame Nacional do Ensino Médio o tema é sigiloso até o momento de realização da prova. Com o passar do tempo de realização compreendemos os critérios de avaliação da redação e entendemos que os responsáveis pela escolha do tema o fazem de forma a prestigiar algum tema relevante da atualidade. No entanto, até o momento da prova não existe certeza sobre o tema que será objeto da redação.

O bom estudante, ou a boa estudante, ao longo de sua preparação para o Exame trabalha um pouco de cada tema relevante na atualidade, mas, não possui tempo hábil para aprofundar nenhuma temática da realidade vigente, porque isto lhe renderia deixar de estudar outras coisas, afinal, temos tempo limitado. No dia da escrita da redação o estudante, ou a estudante, conhece o tema que será objeto de sua argumentação, tem contato com referências propostas na própria avaliação e estrutura a sua redação com estes recursos. Sendo assim, pergunto-lhes: uma redação que passou por este processo possui a mesma qualidade de uma redação que se submeteu a metodologia científica, filosófica, artística, ou de qualquer outra forma tradicional de consolidar os saberes tradicionais humanos?

Mesmo sem ter debruçado neste texto como funciona a metodologia científica, filosófica, artística ou de qualquer outra forma tradicional do conhecimento humano, nossa intuição já reconhece que as condições da opinião são muito mais limitadas do que as formas de conhecimento que possuem outros tempos, recursos e que se legitimam em forma de tradição – ou seja, é coletivamente validado devido aos critérios compreendidos pelos que realizam tal tradição.

Em suma, as opiniões possuem sim uma função em nossa estrutura de pensamento, a dúvida que parece pertinente após a exposição proposta é: as opiniões, frutos das individualidades, podem ser consideradas expressões da verdade em que medida? Sabendo que os saberes tradicionais possuem mais recursos, tempos e legitimidade, por que as pessoas falam tanto do ponto de vista pessoal e pouco sobre os saberes tradicionalmente construídos?

Como você caro leitor ou leitora pode perceber, estas questões são complexas, por isso, talvez seja muito pertinente que todos nós sejamos capazes de problematizar as nossas opiniões. Você é capaz disto?

Embora este texto seja bastante introdutório e uma opinião, acredito que ele tenha cumprido a sua função de propor uma reflexão sobre o lugar da opinião e da individualidade no modo de conhecer o mundo. Em outras ocasiões poderemos aprofundar estas questões e buscar respostas mais precisas sobre o que estamos tentando compreender. Esta necessidade de tempos e recursos futuros para aprofundar a questão não seria mais uma prova das limitações da opinião?

Até breve! Obrigado por me acompanhar até aqui.
Caso tenha gostado, que tal ajudar a compartilhar? Caso tenha encontrado erros ou gostaria de fazer alguma crítica, que tal comentar abaixo?
Atenciosamente.
Prof. Ricardo de Jesus Lopes

Comentários

  1. Olá Professor, tudo bom? Olha muito interessante o seu artigo. Se considerarmos a força das retóricas pósmodernas e a liquides dos debates de opnião na sociedade esse artigo é fundamental para se pensar e entender como essa luta de idéias opera de forma real e produz e reproduz as realações soaciais do presente. Ainda sim, sem arrogância da minha parte, acharia interessante falar um pouco melhor sobre o senso comum, o conhecimento filosófico e o conhecimento científico. Porque ai sim, talvez, o debate sobre a opnião seja mais claro e organiza e explica os conceitos fundamentais para tal reflexão. Abraços fraternos,
    Luquinhas.

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    1. Muito obrigado pela crítica e pela sugestão. Sem dúvidas irei fazer um esforço para tratar a sua proposta. Obrigado pela atenção.

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  2. Olá! Acho que o texto abre possibilidades para um amplo e bom debate. Concordo com o colega quando ele aponta a necessidade de trabalhar mais o conceito de senso comum, outras questões importante a serem aprofundadas é a categoria alienação e a individualidade. Sobre essa questão, Newton Duarte tem um livro bastante interessante; "A inividualidade para si."
    Seguimos politizando o bom debate.

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    1. Muito obrigado pela crítica e pela sugestão. Sem dúvidas irei fazer um esforço para tratar a sua proposta. Obrigado pela atenção.

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