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Crítica à Base Nacional Comum Curricular – BNCC (Parte I)

 


Saudações estimados leitores (as).


A educação brasileira sempre é um assunto extremamente falado no cotidiano de todas as pessoas, mas, muito pouco se fala de forma sistemática, embasada e crítica. As pessoas, de modo geral, têm pouquíssima clareza sobre qual a função da escola, sobre o que é o currículo, para que ele serve e qual o seu impacto na cultura. Talvez as manifestações mais enfáticas sobre o chamado Novo Ensino Médio (NEM) possa ser uma oportunidade para ampliar a discussão pública entorno das escolas, dos objetivos da educação básica e de como este assunto é importante para o desenvolvimento da nação.


Mas, não podemos compreender o Novo Ensino Médio (NEM) e perder de vista que é preciso compreender toda a mudança proposta para a Educação Básica, que sofreu uma recente transformação graças ao que ficou chamado como Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Este documento promulgado durante o governo federal de Michel Temer e que entrou em vigor em 2019 estabeleceu profundas mudanças na educação básica e afeta diretamente a formação de todos os jovens em idade escolar desde 2019, mas, o que você sabe sobre estes acontecimentos? Você sabe para quais caminhos estão direcionados os esforços da educação brasileira?


Para tentar contribuir sobre o entendimento acerca da educação brasileira esta série de artigos procurará esclarecer a realidade que está se colocando diante das recentes mudanças.


A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento normativo que estabelece as competências e as habilidades que cada estudante deve desenvolver em cada etapa, em cada série, em cada idade, no que diz respeito aos planos estratégicos que estruturam a educação básica. Embora ela tenha sido criada com o objetivo de melhorar a qualidade da educação básica de nosso país, a Base, desde seu surgimento, ainda na esfera da proposta, tem sido alvo de críticas por parte de educadores, especialistas e movimentos sociais que se posicionaram diante a situação.


Quando proposto no contexto do governo federal de Dilma Rousseff em 2014 a proposta mostra uma potencialidade enorme, buscava ser um documento coletivo, construído democraticamente com o apoio profissional e social. No entanto, a partir do dia 31 de agosto de 2016, tal Base passou por uma significativa diferença no modelo de sua construção. Com as mudanças, os textos que viraram normativos perderem a participação popular e se tornaram instrumento de um determinado viés educacional especialmente associado a um neoliberalismo proposto através da adequação a um especial documento internacional que é citado nas primeiras páginas do documento final da Base Nacional Comum Curricular.


Dentre os problemas que estão constantemente sendo levantados pela sociedade contra a chamada Base Nacional Comum Curricular estão: 


1. Uma falta de exatidão ou um esvaziamento do que está sendo definido como competência e habilidade, conceitos que são simplesmente o cerne e ponto mais importante de um documento desta ordem, uma vez que todas as derivações e processos são propostas para o desenvolvimento de competências e habilidades.


2. Uma sobrecarga de conteúdos, uma vez que o cerne da Base está direcionado para o desenvolvimento de competências e habilidades houve um nítido problema no modo pelo qual se inserem os conteúdos que devem ser ensinados como instrumentos em que se sustentam as aplicações de raciocínios, práticas, competências e habilidades. Todos os procedimentos mentais, ou cognitivos, são ações sobre um determinado objeto, que pode ser chamado de conteúdo, e o descaso dado aos conteúdos que devem ser BÁSICOS na escolarização inviabilizam utilizar tal documento como instrumento de alicerce para o planejamento do ensino. Mas, qual é a função de um documento normativo como este se não estabelecer bases para o planejamento do ensino?


3. Ao mesmo tempo que estabelece um certo discurso vazio, a Base Nacional Comum Curricular consegue demonstrar uma falta de flexibilidade para a adaptação às realidades locais, uma vez que seu direcionamento é explicitamente dedicado ao modelo de vida urbano em larga escala e que possui uma direção na compreensão do desenvolvimento educacional em aspectos de produção e consumo sob uma espécie de égide de cultura empreendedora, bastante específica e direcionada, coisa que de muitas maneiras precisam ser problematizadas por sua capacidade de ter aderência na realidade vigente.


4. Sendo uma proposta dentro de uma estrutura estatal democrática esperava-se, dada o tamanho da transformação, que os agentes envolvidos diretamente e a sociedade civil fossem incluídas de maneira séria e decisiva. No entanto, houve ausência de diálogo com os profissionais e as instituições durante a elaboração do documento o que por consequência levou a uma crise durante o processo de implementação que gerou até a necessidade de adiamento e revisão no ano vigente de 2023.


5. É preciso reconhecer que faltou recursos para a implementação da Base Nacional Comum Curricular. Desde seu início de implementação em 2019 quais foram os esforços, recursos e políticas públicas destinadas ao desenvolvimento da Base Nacional Comum Curricular? Se o modelo anterior trazia problemas, como produzir um novo modelo em concomitância sem incluir nenhum novo recurso?


6. Diante das propostas por vezes esvaziadas, por vezes inadequadas, como é possível avaliar o desenvolvimento de competências e habilidades desenvolvidas pelos discentes? O êxito dos processos de ensino e aprendizagem são medidos mediante avaliação, mas, além disso, os processos de acesso ao ensino superior e ao mundo do trabalho envolvem seleção de qualificação demonstrada pela capacidade de demonstrar domínio do nível de aprendizagem que o jovem deveria estar. Neste 2023 já veremos uma primeira crise neste sentido: como os jovens que fazem o Novo Ensino Médio, baseado na Base Nacional Comum Curricular, se os vestibulares e o ENEM ainda não modificaram integralmente a sua estrutura para este novo documento normativo?


7. Tratando-se de uma Base NACIONAL Comum Curricular esperava-se que uma política nacional de formação continuada para professores (as) fosse amplamente realizada e que os processos tivessem alguma métrica para manter todos os Estados da federação em um caminho uniforme, no entanto, qual foi a política pública que garantiu tal realização? Quais foram as ações que promoveram um bom desenvolvimento para a implementação da Base Nacional Comum Curricular?


8. Apesar de muito se falar em uma educação para o futuro a realidade é que falta investimento para a infraestrutura escolar. Gostaríamos de estar discutindo qual ou quais as melhores ferramentas que as escolas deveriam utilizar para desenvolver o ensino e a aprendizagem com qualidade, no entanto, precisamos reconhecer que atualmente a realidade é que as estruturas físicas das escolas são inadequadas, a maioria dos prédios incapazes de comportar aspectos básicos de dignidade humana.


9. Ainda, os últimos anos de governo federal foram marcados em várias ordens de procedimentos que desvalorizavam os professores (as), especialmente de instituições públicas. É preciso reconhecer a valorização dos profissionais da educação como política pública que garante a qualidade das instituições. O salário adequado, o acesso a formação continuada, o acesso a bens culturais etc.


10. Caso ainda não esteja convencido dos muitos problemas que estamos enfrentando na educação brasileira, talvez uma última questão pode ser útil: diante da falta de estrutura, de clareza e de crises de implementação, como avaliar o êxito da Base Nacional Comum Curricular? Se o modo de verificar os problemas fadar uma multidão à falta de acesso a educação, a transformação valeu a pena? Não seria melhor investir e qualificar a progressão de melhoria do sistema anterior? Em caso de êxito, como seremos capazes de reconhecer as causas de melhoria se não há clareza nas práticas que estão em vigência?


Os problemas apresentados até aqui são graves e não podem ser negligenciados. O governo de Lula em seu primeiro ano, em 2023, demonstrou esforço para lidar com as problemáticas. Mas, ainda há muito o que fazer e somente com o envolvimento social poderemos construir uma educação democrática de qualidade. 


A função da Base Nacional Comum Curricular é melhorar a qualidade da educação básica do país. Sendo assim, é preciso estabelecer clareza nas definições, especialmente do que estamos desenvolvendo, as competências e habilidades. Não podemos sujeitar a interpretações equivocadas que são desenvolvidas pela multiplicidade de políticas públicas em âmbito federal, estadual e municipal, a organização da educação brasileira, divisão prevista pela Constituição de 1988. Não podemos prejudicar os estudantes pelas falhas normativas e nem responsabilizar os professores (as). Cada agente social precisa se responsabilizar por seu campo de atuação e a nós, enquanto cidadãos, precisamos atuar para que cada instância exerça sua função para a formação de nossos jovens, adultos e idosos para que o futuro da nação esteja alinhado com nossas escolhas. Não podemos sucumbir a respostas simplistas inadequadas, nem a sobrecarga que inviabiliza a prática cotidiana. Não podemos tratar superficialmente a educação básica brasileira.


Em suma, a Base Nacional Comum Curricular é um documento normativo muito importante e por isso precisamos trabalhar para melhorar a sua qualidade, que por consequência é desenvolver práticas escolares com melhor qualidade e que levará ao aperfeiçoamento do ensino e da aprendizagem do país, o que afeta diretamente àqueles que estão nas estruturas formativas. Os problemas precisam ser apontados, debatidos, democraticamente desenvolvidos e fomentados como políticas públicas federal, estadual e municipal, conforme sua natureza burocrática.


Neste momento, tratamos de modo introdutório, mas, este é o primeiro texto dos estudos sobre educação brasileira que serão desenvolvidos. Por isso, caso possa, acompanhe esta jornada e juntos vamos construir caminhos para a melhoria da educação!


Até breve!


[Gostou deste texto ou tem alguma crítica? Comente, compartilhe e ajude este trabalho feito com muito carinho. Juntos podemos chegar mais longe!]

Comentários

  1. Eu ainda não tive acesso ao Documento - Base Nacional Comum Curricular, vou procurar.

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  2. Ótimo texto. É didático e esclarece item
    a item os pontos debatidos e as contradições existentes sejam na implementação ou no desenvolvimento. Parabéns, camarada.
    Diei

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    1. Muito obrigado pela leitura e por destinar um pouco de seu tempo comentando aqui. Sua amizade estimula as produções dos textos daqui. Obrigado camarada.

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  3. Muito esclarecedor. O item 9, "procedimentos que desvalorizam os professores", faz com que fiquem desmotivados e muitas vezes desistam da carreira. Precisamos ter mais atenção aos professores e valorizar-los.

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    1. Muito obrigado pela leitura e por seu comentário. Sim, precisamos muito ter cuidado, carinho e justiça para os professores e professoras que lutam diariamente pela educação brasileira. Atenciosamente.

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  4. Ótima iniciativa. Parabéns, corroboro com as ideias apresentadas. Lembrando que a atual BNCC, está diretamente relacionada ao modelo neoliberal de educação. Nesse sentido, não consiste em erro e sim, em um projeto neoliberal financiado por instituições empresariais.

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    1. A BNCC talvez seja um dos exemplos mais gritantes de como transformar um modelo de conhecimento democrático em uma deturpação da democracia para atender interesses de um único segmento. Espero aperfeiçoar esta discussão nos próximos textos. Novamente, muito obrigado.

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