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"Tinha eu quatorze anos de idade": A crítica veemente e delicada de Paulinho da Viola e Elton Medeiros

Saudações estimados leitores e estimadas leitoras.

Hoje gostaria de dedicar algumas palavras sobre uma das músicas que mais gosto, que mais me sensibiliza e mais me provocou uma espécie de identificação com os compositores. A canção "14 Anos", composta por Paulinho da Viola e Elton Medeiros em 1968, narra a história de um jovem de 14 anos que se vê diante de uma escolha crucial: seguir os sonhos de se tornar um sambista ou atender às expectativas paternas de seguir uma carreira tradicional como médico, engenheiro ou filósofo. Através de uma letra poética e melodia melancólica, a canção explorou temas como conflitos geracionais, a busca pela identidade e a valorização da cultura popular brasileira mesmo diante do enfrentamento da indústria cultural que busca se apropriar das manifestações culturais genuínas, convertendo-as como meras e exclusivas mercadorias, objetos de consumo fugaz.

Talvez você estimado (a) leitor (a) já conheça a música, mas, para criar uma sequência de raciocínio que possa ser mais abrangente e este texto compreensível mesmo por quem ainda não conhece a canção, neste momento gostaria de sugerir dois movimentos. O primeiro consiste em permitir que cada um de vocês ouça a música:

(Desculpem caso não gostem desta versão, existem muitas outras disponíveis com fácil acesso, escolhi esta com base num critério muito pessoal).

Após a sua contemplação da canção, gostaria que você tivesse a oportunidade de ler com atenção e calma a letra genial de Paulinho da Viola e Elton Medeiros:


14 Anos

Tinha eu 14 anos de idade
Quando meu pai me chamou (quando meu pai me chamou)
Perguntou-me se eu queria
Estudar filosofia
Medicina ou engenharia
Tinha eu que ser doutor

Mas a minha aspiração
Era ter um violão
Para me tornar sambista
Ele então me aconselhou
Sambista não tem valor
Nesta terra de doutor
E seu doutor
O meu pai tinha razão

Vejo um samba ser vendido
E o sambista esquecido
O seu verdadeiro autor
Eu estou necessitado
Mas meu samba encabulado
Eu não vendo não senhor

(Extraído de: https://www.letras.mus.br/paulinho-da-viola/278680/ , visualizado em 14.07.2024)


"Creio que seja muito óbvia a condição que tanto emociona alguém que sonhou ser músico durante toda infância/juventude e escolheu a carreira em filosofia para a vida adulta, no caso este autor que lhes escreve. Mesmo sabendo que o prestígio pela carreira em filosofia tenha vertiginosamente caído em nossas terras, a canção ainda diz muito sobre o ideário de nosso povo. Talvez o único jeito que eu posso descrever pessoalmente como esta música me afeta é: "parece que escreveram para mim". Tenho certeza que cada um de vocês já sentiu isso com alguma música".


É evidente, para você estimado (a) leitor (a) não interessa saber das percepções pessoais que esta música provoca no autor deste texto. Vamos, a partir daqui, propor algum trabalho intelectual sobre a brilhante composição dos grandes ícones da cultura popular brasileira.

Em uma perspectiva de análise formal, a canção apresenta uma estrutura simples e repetitiva, estrutura esta que contribui para a fácil memorização da letra e reforça a mensagem central da canção. A melodia é melancólica e nostálgica, transmitindo a tristeza do jovem diante da difícil escolha que precisa fazer. O ritmo de samba, no entanto, traz um toque de esperança e resistência, sugerindo que o jovem não desistirá facilmente de seus sonhos. A harmonia é simples e direta, utilizando poucos acordes nas cordas e simplicidade rítmica. Essa simplicidade reforça a ideia de que a canção se concentra na emoção e na mensagem central, sem floreios desnecessários, enfatizando o dilema juvenil de enfrentamento das condições sociais que lhe são impostas.

Em busca de uma análise temática, por assim dizer, a canção retrata o conflito entre o jovem, que sonha em ser sambista, e seu pai, que deseja que ele siga uma carreira tradicional, que lhe traga maior prestígio social e lhe garanta um suposto sucesso pessoal representado pela aprovação pública. Esse conflito reflete as tensões sociais da época, em que a cultura popular brasileira era frequentemente desvalorizada pela elite supostamente erudita.

Ainda, podemos destacar a temática do jovem aos 14 anos que se encontra em um momento crucial de sua vida, buscando definir sua identidade e seu lugar no mundo. A escolha entre seguir seus sonhos ou atender às expectativas paternas representa essa busca por autoconhecimento, mas também revela a difícil fase que todos nós passamos em nosso crescimento que é ponderar até que ponto estamos dispostos a abrir mão de nós mesmos para produzir os resultados que esperam de nós.

A canção celebra, através da escolha do jovem em manter-se fiel à sua "vocação", a importância da cultura popular brasileira, representada pelo samba. Apesar da desvalorização por parte da elite da época, que talvez perdure até hoje, o jovem reconhece o valor do samba como forma de expressão cultural e identidade social. 

A música também apresenta uma crítica social sutil, ao abordar a exploração dos sambistas pela indústria fonográfica, criando a "obrigação" de se vender para sobreviver, revelando no momento histórico em que acontecia a conversão do que significava ser músico e especialmente sambista antes e depois da sua apropriação pela indústria cultural fonográfica. O jovem, personagem da canção ou sujeito lírico, observa que o samba é vendido, enquanto os sambistas são esquecidos e mal remunerados, ressaltando que embora se pagasse pelas composições havia o descaso com o "verdadeiro autor" e com o que significava verdadeiramente ser sambista.






"14 Anos" é uma canção tocante, especialmente quando nos afeta na dimensão da identificação, reflexiva que explora temas muito relevantes para a história recente de nosso país, tais como  os conflitos geracionais, a busca pela identidade e valorização da cultura popular em meio a uma sociedade que marginaliza e "rebaixa" a cultura de origem popular. Através de uma linguagem simples e direta, a canção nos convida a refletir sobre nossos próprios sonhos e aspirações, e a importância de lutarmos por aquilo que acreditamos.

E para você, como foi a transição da juventude para a vida adulta? Caso ainda esteja nesta transição, como está sendo? Se ainda não chegou nesta fase, o que espera passar?

Não tenho dúvidas que o contexto ilustrado por Paulinho e Medeiros já se transformou significativamente, no entanto, as questões base, as provocações e seus sentidos mais profundos são latentes de modo atemporal e universal, precisamente por isso, nesta ocasião, aproveito para escrever esta reflexão como forma de homenagem aos grandes mestres da cultura popular brasileira.

Espero que tenham gostado do texto. Caso possa, ajude este texto a circular compartilhando com os seus entes queridos (as) ou com os amigos (as).

Até breve.
Atenciosamente/Respeitosamente.
Prof. Ricardo de Jesus Lopes

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